terça-feira, 18 de junho de 2013

ALTO DO BODE

Localizado entre Antonio Bezerra, Henrique Jorge e Genibaú, periferia de Fortaleza, o bairro Autran Nunes é conhecido também pelo apelido de alto do bode. Mas também já foi chamado de Caoca e Alto do São Vicente 


Um bairro com muitos nomes, Autran Nunes, vive um tempo muito diferente de quando era chamado de Alto do Bode. Com um aspecto quase rural, ainda é possível brincar na rua com os amigos e conversar com a cadeira na calçada (Foto: ALEX COSTA) No início, era tudo barro vermelho. E muito mato. Autran Nunes chamava-se Alto do Bode. E a fama não era das melhores. Diziam que lá só dava ladrão. E gente morta aparecia vez por outra no meio dos arbustos. A dona-de-casa Raimunda Sousa de Carvalho, 82, mais conhecida como Dona Calunga, sabe bem da história. Foi uma das primeiras a chegar ao bairro. Sentada no alpendre de casa, na rua Professor Virgílio de Moraes, 364, ela foi encontrada por acaso pelo O POVO. Coisa do destino. E lá estava a memória viva da região. Moradora do Autran Nunes há mais de 40 anos (ela já perdeu as contas do tempo exato), Raimunda mudou-se para o bairro com o marido Raimundo Gomes de Carvalho, apelidado à época como Gás, e mais sete filhos pequenos. O lugar era quase completamente desabitado. "Era como no sertão. Só tinha muito era cobra. Nesse tempo era tudo deserto. Não tinha nem estrada. Só tinha uma casa na frente. Não tinha cerca, não tinha nada", lembra. 

No ido dos anos 1960, quando a iluminação do lugar era na base do botijão de gás, ela abriu um comércio que virou ponto de encontro. Segundo Raimunda, eram mais de 40 litros de refresco por dia que não davam conta da demanda. "Minha bodega era cheia de ladrão, mas eu não tinha medo não", conta. Nessa época, o bairro já era conhecido pela alcunha de Alto do Bode. Quem denominou, segundo Raimunda, foi o seu próprio marido (que morreu nos anos 1970 e hoje dá nome ao Centro de Aprendizagem e Integração de Cursos - Caic do bairro). Pelo menos uns 50 anos atrás, o casal morava ainda no bairro ao lado, o Antonio Bezerra, onde mantinha uma criação de cabras. Nesse tempo, o vizinho, que também criava bodes, sentiu falta de um par de novilhos. Deram conta de que os animais estavam amarrados no Alto do São Vicente (a região onde fica o atual Autran Nunes, que, num primeiro momento, ainda teve o nome de Caoca). Os novilhos não foram recuperados nem o ladrão localizado, mas a nova alcunha pegou (e o tom pejorativo também). Mais tarde, arrependido, finado Gás tentou de tudo para fincar o nome Alto do São Vicente com placas e faixas. Foi em vão. Depois, segundo Dona Calunga, o marido resolveu batizar o bairro com um novo nome: Autran Nunes, em homenagem a um juiz amigo. 

Ainda hoje o lugar é lembrado pelo antigo apelido. "Não gosto não. Isso discrimina demais. O nome certo é Autran Nunes", diz a líder comunitária Dalvina Linhares da Silva, 60, moradora há 32 anos do bairro, que recebeu o Vida & Arte Cultura, na sua casa, na rua Tomaz Cavalcante. Ela lembra que, por muito tempo, até mesmo os taxistas se negavam a entrar nas ruas do bairro. Na parada de ônibus, ela ouvia piadas. Hoje a líder comunitária garante que a situação é bem diferente. "Aqui é tranquilo. Já foi mais violento. Antigamente (entre anos 1970 e 1980) tinha um forró nessa rua (Tomaz Cavalcante) que matavam muita gente. Hoje é dentro do normal. De vez em quando, tem brigas. Em 15 dias, matam um. Onde corre droga, corre violência", diz. Mas nem todo mundo quer enterrar a história dos bodes. "Eu continuo até hoje, apesar de ter mudado para Autran Nunes, considerando Alto do Bode. Eu acho até bonito", diz a comerciante Cosma Souza Carvalho, 46, filha de finado Gás e Dona Calunga. Com duas filhas para criar, Cosma mantém um bar ao lado da casa da mãe, mas só vende cachaça até às 10 horas da noite para evitar qualquer transtorno. 

Apesar de tantas histórias de sangue, o bairro - que registra mais de 60 anos - parece uma cidadezinha de interior. Cadeira na calçada é o dia todinho. Conversa de comadre na janela e papo no pé do muro também. As pessoas ocupam as ruas. À pé, de bicicleta. Quase todo mundo se conhece. O horário da calmaria geral é ao meio-dia. O comércio fecha, as portas das casas também. Tudo fica na grade e no cadeado. É um silêncio só. Hora de almoçar e dormir um pedaço. (E proteger-se de qualquer tentativa de assalto, muito comum por essas horas). As construções modestas são todas coladas umas nas outras, formando uma paisagem irregular. A maior parte das casas é de alvenaria. Algumas de taipa são vistas às margens do rio Maranguapinho e da Lagoa do Genibaú. Nesta época do ano, quase todas as paredes estão pintadas pela propaganda de candidatos às eleições. 

Mesmo com o pouco tráfego de veículos, até as ruelas são asfaltadas. As principais vias são a avenida da Liberdade, a rua Professor Virgílio de Moraes (a única por que passa linha de ônibus) e a rua Tomaz Cavalcante (onde fica o posto de saúde, duas igrejas católicas e uma creche). O ponto de encontro do bairro é a Praça da Lagoa. Aos domingos, dizem que o lugar fica lotado. Toca funk e falta espaço para a criançada brincar. Fim de tarde, a caminhada é no calçadão do rio Maranguapinho, ainda que poluído. O ganha pão da população local é mesmo o comércio. Tem de tudo. Oficina de bicicleta, borracharia, mercearia, bares, salão de beleza, papelaria, lanchonete, miudezas em geral. Tem o Studio Fashion Hair, MG Variedades, Mercadinho Francisco, Drink´s Bar, Bar Márcio e Oficina O Gerardo, entre outros tantos, muitos de porta e janela. "Hoje o Autran Nunes está bonito. Tá mais diferente. Tem ruas abertas, quase todas no asfalto. Tem escola de 2° grau, posto de saúde, praça. Iluminação tem por todo canto, saneamento. Tem o calçadão, que tá muito bonito. Quem te viu e quem te vê", orgulha-se Dalvina, ao lado do marido Expedito Neri, 71, funcionário público aposentado, com quem criou seis filhos. 

À tardinha, o ritmo segue lento. Diante de um pôr-do-sol deslumbrante de alaranjado, a criançada brincava no parquinho na Praça da Lagoa do Genibaú, que divide um bairro do outro. Balanço, escorrega, campinho de futebol, pipa. O forró truava - sem incomodar ninguém - num bar do outro lado da rua, onde estava escrito na parede o agrado da casa: "panelada, sarrabulho, bisteca, caldo e calabreza" (assim com "z" mesmo). Um cavalo pastava sozinho na vegetação da lagoa, suja e quase seca. O churrasquinho começava a ser montado na calçada. O estudante Elineudo dos Santos, 10 anos, morador do bairro, era um dos que brincavam por lá. O menino posou para fotos com a camisa de Ronaldinho, número 10 da seleção brasileira de futebol. Como qualquer menino dessa idade, gosta de jogar bola. Logo depois da escola, a praça é o seu lugar. Dele e de tantos outros. Animados com a presença do fotógrafo, numa terça-feira qualquer, meninos e meninas posavam satisfeitos para as lentes. O dia se despedia e era hora de voltar. Com um bucólico Autran Nunes na cabeça. 

Fonte: Jornal O Povo